Quando o aborto não é crime no Brasil?
Um caso judicial, ocorrido no Município de Tijucas, Santa Catarina, tem tido repercussão midiática intensa. Críticas e ataques estão sendo feitos à Juíza competente, assim como à representante do Ministério Público. Isso porque, segundo notícias, ambas teriam constrangido uma criança, de 11 anos de idade, a permanecer com uma gravidez advinda de estupro. Não tivemos acesso aos autos (até por serem sigilosos), nem estivemos presentes no dia da eventual ocorrência. Por isso, julgamentos precipitados não serão por nós expressos, e o respeito a ambas atoras processuais, mantido. A intenção deste escrito (simples e breve) é apenas informar ao leitor sobre quando se permite o aborto no Brasil, mostrar algumas peculiaridades e sanar outras tantas dúvidas. Vejamos.
A primeira questão é ter em mente que, qualquer ato sexual praticado com uma pessoa de 11 anos de idade será tido como estupro. Mesmo que não tenha havido violência ou ameaça grave, mesmo que a criança tenha permitido, a lei diz, de forma categórica, que uma pessoa menor de 14 anos (13 anos ou menos) não tem capacidade para permitir atos sexuais consigo. É uma das hipóteses do chamado "estupro de vulnerável". Se uma pessoa está grávida aos 11 anos de idade, evidentemente, o ato sexual com ela praticado ocorreu ou com seus 11 anos, ou com 10 anos de idade. Não há dúvida nem discussão, é estupro.
Dissemos isso exatamente porque uma das hipóteses em que se permite o aborto no Brasil é a situação em que a gravidez adveio de estupro. Veja o que diz o art. 128 do Código Penal:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Alguns pontos podem ser observados aí:
- Inciso I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante -não será crime desde que não haja outro meio de salvar a vida da gestante, isto é, o aborto é mesmo necessário, é a única saída. O risco de morte da gestante não precisa ser atual ou iminente, bastando um diagnóstico neste sentido. Além disso, observe que, nesta situação, dispensa-se autorização da gestante ou de seu representante legal (o médico é o juiz aí para decidir). Por fim, é saber que, excepcionalmente, tal aborto pode ser praticado por outra pessoa que não seja médica, como quando a gestante estiver correndo risco atual ou iminente de morte (mas, neste caso, não será crime por outras razões, o chamado "estado de necessidade de terceiro", que não vem ao caso agora).
- Inciso II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal - veja que esta situação pressupõe três requisitos:
A) Que seja praticado por médico. Não pode outra pessoa praticar este aborto, em princípio. Como dito, no caso acima, do inciso I, só se permite porque há uma necessidade (estado de necessidade) de salvar a vida de alguém, logo, abre-se a exceção de poder ser feito por pessoa que não seja médica. Nesta situação de estupro, a gestante não corre risco de vida, então, em princípio, só o médico é quem pode fazer este aborto. Claro que esta situação ainda admitirá exceções, como é típico do Direito, uma vez que as variantes são infinitas e pode ser necessário, para um caso concreto, admitir o aborto e não punir quem o fez. Exemplo clássico seria provar a impossibilidade de acesso a um médico. Imagine o leitor uma vítima de estupro numa aldeia indígena longínqua, sem acesso a transporte para a procura deste profissional. Quem fizer o aborto poderá não ser punido, mesmo que não seja médico. É caso excepcional.
B) Que haja consentimento da gestante ou de seu representante legal. Se a gestante, como é o caso de uma menina de 11 anos, é incapaz, quem deve consentir são seus pais. E se a criança de 11 anos quer ter o filho e os representantes não quiserem? O consentimento é necessário para que o aborto aconteça, não para que a gestação seja mantida. A incapaz não precisa de autorização dos pais para manter a gestação, apenas para realizar o aborto. Isso é entendimento doutrinário dominante. Se a vontade da menor é ter o bebê, tem ela o direito de tê-lo. E o contrário? Ou seja, e se a incapaz quer abortar e os pais não querem? Aí não pode fazer o aborto, pois falta o consentimento.
C) Que a gravidez seja oriunda de estupro.
Portanto, são apenas nestes dois casos legais que o aborto não será tido como crime, com todos estes requisitos e exceções. Não obstante, ainda há uma situação trazida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), ou seja, um caso que não é trazido pela lei, mas sim por um Tribunal. Isso é permitido, pois o que o Judiciário não pode fazer é criar crimes e penas, mas, excluí-los, pode. O caso permitido pelo STF foi o de feto com anencefalia, que é a situação de má formação do nascituro, que ocasiona a falta do encéfalo (cérebro) e até do crânio. Nestes casos, a vida após o nascimento é inviável, logo, permite-se o aborto. Entretanto, é opção da gestante fazer o aborto ou não, não é obrigatório. Pode levar a gravidez até o fim se assim desejar, pelos motivos pessoais que forem.
Cuidado: o STF não autorizou o aborto para caso de má formação congênita (não formou uma das mãos, uma perna é maior que outra etc.). Se a vida fora do útero é possível (ainda que com dificuldades), o aborto será crime. É apenas para o caso de anencefalia.
Em conclusão, quaisquer outras razões (sociais, dificuldades financeiras,
morais etc.) alegadas por quem fez um aborto não serão suficientes para excluir
este crime, devendo quem o praticou responder criminalmente.