O que são a anistia, graça e indulto? Por que existem e para que servem?
Anistia, graça e indulto: pontos comuns aos três institutos.
Neste tópico, todos os pontos tratados são válidos tanto para anistia, como graça, como indulto, é um tópico introdutório, que trata de forma ampla os três institutos.
Estes três institutos são formas de perdão estatal em relação a fatos ou sujeitos que tenham praticado algum crime. Clemência do Estado, seja por motivos de política criminal ou por razões de dignidade humana. Basta ao leitor ter esta noção inicial por agora: o Estado irá perdoar e estará extinta a punibilidade (possibilidade de punir o crime praticado) daqueles que são mencionados; e este perdão não será dado por um juiz, pois aí estaríamos diante do chamado "perdão judicial", que também existe para determinadas situações previstas em lei, mas que não é agora nosso foco. Aqui, tem-se uma decisão política, não judicial; será uma decisão do governo (Poder Executivo) ou do Congresso (Poder Legislativo), e não do Poder Judiciário.
Sabendo-se isso, vejamos quais os crimes que admitem ser perdoados pelo nosso ordenamento e se há alguma restrição em relação a isso.
Que tipo de crime pode ser perdoado pelo Estado? Esta pergunta é feita porque existem crimes que possuem suas "razões de existência" diferenciadas dos chamados "crimes comuns". Os crimes comuns são aqueles praticados pelos civis (nós, em geral) em situações tidas como comuns, normais, ou seja, em um contexto histórico e social de normalidade, sem nenhuma principiologia excepcional que os tornaria diferenciados. São exemplos o furto, o homicídio, o estupro, o estelionato etc.
Já os crimes militares e políticos não seriam "crimes comuns", exatamente porque o contexto em que são praticados é um contexto diferenciado, com suas próprias razões de existência: o crime militar possui sua principiologia própria, baseada, especialmente, na ideia de hierarquia que deve existir no meio militarizado; o crime político, por sua vez, existe, em regra, em Estados não democráticos (ditaduras), em que se pune a opinião política contrária ao governo impostor que está no comando do país. Em nosso contexto civil de normalidade, podem até nos parecer estranhos a punição de alguns crimes militares, mas, naquele contexto especial (militarizado) pressupõe-se que é necessária a punição. Da mesma forma o crime político: só faz sentido punir alguém por opinião política contrária à sua se estivermos num contexto ditatorial, fora da democracia (onde o pluralismo de ideias deve viger). Veja então o leitor que são situações próprias que justificam a existência destes crimes "não comuns".
Tudo isso fora explicado para podermos responder: que tipo de crime pode ser perdoado pelo Estado? E a resposta é que estes institutos (anistia, graça e indulto) podem alcançar quaisquer crimes, sejam crimes propriamente políticos (em razão de opinião política, como ocorre nas ditaduras), crimes comuns (roubo, estupro etc.) ou os crimes militares (que são os previstos no Código Penal militar). Por ser ato de soberania do Estado, possui ele o poder de clemência (perdão) sobre os crimes que entender não serem mais de seu interesse de punição, sejam estes crimes cometidos no contexto que for. Portanto, não há nenhum óbice previsto em nosso ordenamento que impeça a um governo, num contexto de normalidade histórica e social, de perdoar fatos ou pessoas que tenham praticado seus crimes em contextos específicos ou de outrora.
Pronto, sabemos já que anistia, graça e indulto podem ser usados para estas classificações de crimes.
Entretanto, o alcance do perdão estatal por meio destes institutos tem limites, pois há aqueles crimes que são insuscetíveis de receberem o perdão. Por quê? Porque há crimes que o próprio Estado soberano (este mesmo que pode perdoar) escolheu não serem passíveis deste tipo de perdão, em vista da gravidade que considera terem tais condutas. É o próprio soberano (Estado) se autolimitando (governo das leis, não dos homens). E quais seriam estes crimes?
- Crimes hediondos.
- Tráfico de drogas.
- Terrorismo.
- Tortura.
Ver o art. 5º, XLIII da Constituição: XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem. Este artigo constitucional foi complementado pela lei dos crimes hediondos, que trouxe em seu art. 2º, I (lei 8.072/90): Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: I - anistia, graça e indulto[1].
Estas são as considerações gerais. Agora, passemos às particularidades de cada um destes institutos. Comecemos com a anistia.
Anistia.
É o perdão dado por lei, atingindo fatos criminosos já ocorridos. Na anistia, é a lei que provoca o esquecimento jurídico-penal de um fato. Extingue-se a punibilidade (possibilidade de punir o sujeito), portanto, mediante lei.
O seu alcance é para fatos ocorridos em um ano, em um determinado mês ou dia. Não se refere expressamente a pessoas, mas sim a fatos. Assim, todos os que praticaram determinado fato terão extinta a punibilidade por meio da lei que concedeu a anistia. Exemplo: uma lei de dezembro de 2016 diz que aqueles que sonegaram imposto de renda em até R$30.000,00 no ano de 2015 estão anistiados, não podendo responder pelo crime de sonegação fiscal.
Na anistia, ocorrerá apenas o esquecimento jurídico-penal, ou seja, os efeitos civis e administrativos continuam existindo. Em nosso exemplo, continuam as pessoas com a obrigação de restituir o imposto devido, só não respondendo criminalmente pelo que fizeram.
Vejamos um exemplo real, trazido pela lei 12.505/11, art. 1º:
Art. 1o É concedida anistia aos policiais e bombeiros militares que participaram de movimentos reivindicatórios por melhorias de vencimentos e condições de trabalho ocorridos:
I - entre o dia 1o de janeiro de 1997 e a publicação desta Lei nos Estados de Alagoas, de Goiás, do Maranhão, de Minas Gerais, da Paraíba, do Piauí, do Rio de Janeiro, de Rondônia e de Sergipe;
II - entre a data de publicação da Lei no 12.191, de 13 de janeiro de 2010, e a data de publicação desta Lei nos Estados da Bahia, do Ceará, de Mato Grosso, de Pernambuco, do Rio Grande do Norte, de Roraima, de Santa Catarina e do Tocantins e do Distrito Federal.
Veja: a lei deu o perdão não para uma pessoa "x" ou "y", não para pessoas determinadas, mas sim para fatos praticados por policiais e bombeiros no período a que se refere. Em verdade, o leitor não precisa se preocupar se o perdão está sendo concedido a fatos ou a pessoas, pois, ao final das contas, o perdão extinguirá a punibilidade da mesma forma. Ora, os fatos são praticados por pessoas, logo, esta diferenciação trazida pela doutrina não é das mais úteis.
E quem tem a competência para anistiar um fato criminoso? Como dito, a anistia advém de uma lei, portanto, é o Congresso Nacional quem tem a competência para anistiar. Art. 48, inciso VIII da Constituição: Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: VIII - concessão de anistia.
Mas quem, efetivamente, irá declarar a extinção da punibilidade para os casos de anistia? Como estamos vendo, quem concede a anistia é a lei, contudo, será o juiz, para cada situação sobre a qual se deparar, quem irá declarar a extinção da punibilidade por decorrência da lei de anistia. Será o juiz competente aquele que estiver com o processo em mãos. Por exemplo, se a pessoa já está cumprindo pena, caberá ao juiz da execução a declaração da extinção da punibilidade. Se o processo está em andamento na Vara de Violência Doméstica Contra a Mulher, caberá ao juiz desta Vara declarar a extinção da punibilidade. E assim sucessivamente. Sobre isso, ver o art. 187 LEP (Lei de Execução Penal): Art. 187. Concedida a anistia, o Juiz, de ofício, a requerimento do interessado ou do Ministério Público, por proposta da autoridade administrativa ou do Conselho Penitenciário, declarará extinta a punibilidade. Em suma: a anistia é concedida pela lei e será declarada pelo juiz que estiver com o processo em mãos, podendo fazer isso de ofício (isto é, por iniciativa própria) ou após requerimento de um destes interessados descritos no art. 187 LEP.
Indulto e graça.
Aqui teremos a figura do Poder Executivo (por meio do Presidente da República) concedendo o perdão a determinadas pessoas. Lembre-se: na anistia temos o Poder Legislativo, por meio do Congresso Nacional, aqui estamos diante de um perdão concedido por uma única pessoa, o Presidente.
No indulto, não há menção a fatos, mas sim a pessoas ou qualidades de pessoas. Mas, como dito, isso é indiferente em termos pragmáticos, pois se há menção a pessoas, isso vai alcançar os fatos por elas praticados. Exemplo: concede-se indulto aos condenados a pena não superior a 8 anos que não tenham praticado crimes com violência ou grave ameaça a alguém, e que já tenham cumprido 3/5 de sua pena. Neste exemplo, estaríamos diante do chamado "indulto coletivo", situação em que não se individualiza, não se especifica a quem se destina o perdão. Refere-se, portanto, a uma "generalidade de pessoas que estejam numa determinada situação".
Sim, é algo absolutamente questionável sob diversos pontos de vista, inclusive o da Separação dos Poderes. Muitos criticam o indulto, dizendo que seria uma ingerência do Executivo no Legislativo e Judiciário. A lei penal que prevê o crime praticado pelo indivíduo será desconsiderada e a decisão do Judiciário que o condenou também. Tudo será perdoado por uma única pessoa, o chefe do Executivo (diferentemente do que ocorre num caso de anistia onde, ao menos, temos uma votação e debates entre diversos representantes do povo). A lei, feita por diversos representantes do povo, será aqui esquecida. Haveria uma invasão do Executivo tanto na atividade feita pelo Legislativo como pelo Judiciário. Contudo, o indulto é válido e aplicável até hoje em nosso país.
Então, por que isso existe? São razões históricas que explicam estes institutos. Um novo governo (rei) que queria evidenciar que se inicia, com sua posse, um novo estágio, uma nova fase na história política daquele local. Quer demonstrar que os atos anteriores - do governo anterior - estavam errados e, dentre eles, os atos penais. Daí dava-se indulto, dentre outras medidas.
Sim, tudo isso é questionável e polêmico, mas, como dito, é aplicado desta forma.
Uma dúvida comum é se o indulto ocorre apenas no Natal. Não necessariamente. Basta vermos o conceito de indulto que vimos acima: é coletivo e espontâneo, então, não fica adstrito a uma condição de tempo ou data. O que há é uma tradição no Brasil em conceder tal benefício no Natal, por ser época de se encontrar com a família e de festividades. Mas se o Presidente quiser fazer o indulto em março ou qualquer outra data, ele faz. Estabelece a forma e data e condições que entender pertinentes.
E o que seria a graça? Nada mais que um indulto individual. Na graça ou indulto individual há individualização, nomeação do beneficiado ou dos beneficiados que estão recebendo o perdão. É exemplo o atual caso do Deputado Daniel Silveira, que recebeu a graça do Presidente Jair Bolsonaro:
DECRETO DE 21 DE ABRIL DE 2022
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, caput, inciso XII, da Constituição, tendo em vista o disposto no art. 734 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, e
Considerando que a prerrogativa presidencial para a concessão de indulto individual é medida fundamental à manutenção do Estado Democrático de Direito, inspirado em valores compartilhados por uma sociedade fraterna, justa e responsável;
Considerando que a liberdade de expressão é pilar essencial da sociedade em todas as suas manifestações;
Considerando que a concessão de indulto individual é medida constitucional discricionária excepcional destinada à manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos na tripartição de poderes;
Considerando que a concessão de indulto individual decorre de juízo íntegro baseado necessariamente nas hipóteses legais, políticas e moralmente cabíveis;
Considerando que ao Presidente da República foi confiada democraticamente a missão de zelar pelo interesse público; e
Considerando que a sociedade encontra-se em legítima comoção, em vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição, que somente fez uso de sua liberdade de expressão;
D E C R E T A:
Art. 1º Fica concedida graça constitucional a Daniel Lucio da Silveira, Deputado Federal, condenado pelo Supremo Tribunal Federal, em 20 de abril de 2022, no âmbito da Ação Penal nº 1.044, à pena de oito anos e nove meses de reclusão, em regime inicial fechado, pela prática dos crimes previstos:
I - no inciso IV do caput do art. 23, combinado com o art. 18 da Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983; e
II - no art. 344 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal.
Art. 2º A graça de que trata este Decreto é incondicionada e será concedida independentemente do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Art. 3º A graça inclui as penas privativas de liberdade, a multa, ainda que haja inadimplência ou inscrição de débitos na Dívida Ativa da União, e as penas restritivas de direitos.Brasília, 21 de abril de 2022; 201º da Independência e 134º da República.
JAIR MESSIAS BOLSONARO
Presidente da República Federativa do Brasil
O indulto coletivo alcança várias pessoas; a graça (indulto individual) é direcionada individualmente para uma pessoa ou grupo de pessoas. Quando se diz que é "individual" é no sentido de ser "individualizado", pois pode um grupo de pessoas pedir em conjunto. Já o indulto coletivo é para uma indeterminação de sujeitos e, por isso, acaba se relacionando muitas vezes a questões de política criminal. Exemplo: concede-se o indulto por decorrência da superlotação e impossibilidade de cumprimento de novas sentenças condenatórias que estejam sendo proferidas.
A graça e o indulto possuem o poder de extinguir a punibilidade, de afastar apenas o efeito principal da condenação (a pena, a sanção penal). Os efeitos secundários penais e extrapenais persistem. Ou seja, os condenados continuam sendo considerados reincidentes, tendo maus antecedentes, devem indenizar as vítimas que porventura atingiram, são inelegíveis etc.
E como o Presidente vai conceder graça e indulto? Lei ele não faz; também não é por Medida Provisória. Então, será por decreto da Presidência da República. V. art. 84, XII da Constituição: Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: XII - conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei.
Graça e indulto, em regra, só podem ser concedidos após a condenação transitada em julgado (quando não cabe mais recursos no processo). Mas, há posições contrárias a isso, inclusive, foi o que fez o atual Presidente Bolsonaro, no art. 2º de seu Decreto.
Enfim, pensamos serem estas as considerações a se ter em mente num primeiro momento sobre anistia, graça e indulto.
NOTAS:
[1] Onde estão, portanto, previstos estes crimes? O art. 1º da lei 8.072/90 traz quais são os crimes hediondos. Já a lei de tráfico de drogas é a lei 11.343/06. Os crimes de terrorismo estão na lei 13.260/16. E os de tortura, na lei 9.455/97. Nenhum destes crimes poderá, salvo exceções pontuais, receber anistia, graça ou indulto.