Súmula 694 STF - Não cabe habeas corpus contra a imposição da pena de exclusão de militar ou de perda de patente ou de função pública.

Autor: Marcel Figueiredo Gonçalves.

Comentários: uma súmula muito simples e clara.

O Habeas Corpus (HC) é um dos remédios constitucionais, e está presente em nosso ordenamento desde o Código Criminal do Império (de 1832), e desde a primeira Constituição da República (de 1891). A nomenclatura "remédio constitucional" não fora escolhida por acaso. Os remédios visam, efetivamente, remediar algo. São garantias, são instrumentos colocados à disposição do cidadão para atacarem alguma situação de ilegalidade ou abusiva que tenha ocorrido ou esteja prestes a ocorrer. Exemplo: o Mandado de Segurança (outra espécie de remédio constitucional) será usado quando alguma autoridade pública lhe retirar um direito líquido e certo.

O HC é conhecido coloquialmente como "remédio heroico". Por quê? Porque, para se impetrar um Habeas Corpus, há poucas formalidades a obedecer. Vejamos:

  • Qualquer pessoa pode impetrar um HC, mesmo incapazes, pessoas jurídicas e estrangeiros.
  • É gratuito, não se paga custas.
  • Não há necessidade da presença de um advogado, ou seja, o indivíduo pode impetrar o HC sem ter a chamada "capacidade postulatória", que é aquela capacidade de falar em juízo, própria dos advogados.
  • Não há forma específica para sua escrita, isto é, não há que se obedecer a formatações especiais para se escrever o pedido. Daí se dizer que "cabe HC até mesmo escrito em papel de pão". E cabe mesmo.
  • Deve ser assinado. Uma das poucas formalidades existentes é quanto à necessidade de assinatura de quem está impetrando, seja quem for. Não se admite, portanto, HC apócrifo (sem assinatura).

Veja o leitor que se trata de remédio de facílimo acesso a qualquer cidadão. E esta é mesmo sua intenção, uma vez que o que está em jogo é a liberdade do indivíduo, logo, formalidades devem ser deixadas de lado. Entretanto, por conta desta falta de formalidades, diversos foram os HC's impetrados cujos objetos eram, no mínimo, questionáveis. Veja este exemplo concreto[1]:

Juiz nega HC a chimpanzé reclusa em zoológico na Bahia

O juiz Edmundo Lúcio, da 9ª Vara Criminal de Salvador, negou liminar em Habeas Corpus que pedia a transferência da chimpanzé chamada Suíça, que vive em uma jaula no zoológico de Salvador, para uma reserva ecológica localizada em Sorocaba, interior de São Paulo.

O juiz também solicitou à Secretaria de Meio Ambiente, responsável pelo animal, informações sobre as condições de vida no zoológico. A Secretaria tem até a segunda-feira (26/9) para atender à determinação. As informações são do site Espaço Vital.

O promotor Heron José Santana, da Promotoria de Meio Ambiente na Bahia, entrou com o pedido de Habeas Corpus na segunda-feira (19/9). Santana argumentou que os chimpanzés são parentes próximos do homem, com 99,6% de genes humanos: "A ciência já provou que os chipanzés têm capacidade de raciocínio tal qual o homem, portanto, trata-se de uma pessoa que não pode permanecer enjaulada".

O macho do casal de chimpanzés do zoológico de Salvador morreu de câncer causado, segundo o promotor, pela depressão. "A fêmea também está sofrendo psicologicamente pela sua condição de prisioneira e é por isso que precisamos libertá-la", disse o promotor.

Segundo a petição do Habeas Corpus, Suíça está sem contato com outros primatas desde a morte de seu companheiro, há alguns meses, em decorrência de um câncer. A única chimpanzé do zoológico de Salvador ocupa uma jaula de 74 metros quadrados, onde vive desde 2001, quando veio para Salvador, doada por um criador suíço que morava no Paraná. No chamado santuário, em Sorocaba, para onde é requerida a remoção do animal, existem outros 35 chimpanzés.

Pois é, isso mesmo. Até o Ministério Público, realmente bem-intencionado, já impetrou um HC para um chimpanzé. E isso é possível? Não, não é. Por mais que seja um remédio heroico, sem formalidades, o HC possui seu objeto (motivo fático e jurídico) específico para impetração. O HC está previsto no art. 5º, LXVIII CR, que assim diz: LXVIII - conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.

Veja que são duas as possibilidades para impetração (objeto) do HC:

  • Alguém sofreu atentado à sua liberdade de locomoção (direito de ir e vir), ilegalmente ou com abuso de poder;
  • Alguém está prestes a sofrer um atentado à sua liberdade de locomoção (direito de ir e vir), ilegalmente ou com abuso de poder.

Veja que a Constituição usa o termo "alguém". Por evidente que aquilo que não é "alguém", é "algo", é coisa, não ser humano. Os animais são coisas, por mais que gostemos deles. Logo, não cabe HC para "libertá-los".

Além disso, só cabe HC para as situações acima descritas. No primeiro caso (alguém já tirou seu direito de ir e vir ilegalmente), você impetrará o chamado "HC repressivo", uma vez que a ilegalidade já ocorreu. No segundo caso (um Delegado está com uma ordem de prisão ilegal e fará a sua busca amanhã mesmo), você entrará com o "HC preventivo", uma vez que a prisão ilegal ainda não ocorreu. Fora destas hipóteses, não cabe HC. Simples assim.

E o que a súmula em pauta vem dizer? Exatamente que, para todas as situações nela elencadas, não há ou não há mais ameaça ou lesão ao direito de ir e vir, não cabendo impetrar HC. Daí que:

  • Não cabe HC contra pena de exclusão de militar - o militar está sujeito, entre outras, à pena de exclusão de sua corporação, prevista no art. 102 do Código Penal Militar[2]. Não é uma situação de perda ou ameaça do direito de locomoção, logo, não cabe HC.
  • Não cabe HC contra pena de perda de patente - o militar está sujeito, entre outras, à pena de perda de patente, prevista no art. 142, §3º CR[3]. Não é uma situação de perda ou ameaça do direito de locomoção, logo, não cabe HC.
  • Não cabe HC contra pena de perda de função pública - o art. 92, I, "a" CP prevê como um dos efeitos da condenação a perda da função pública[4]. Não é uma situação de perda ou ameaça do direito de locomoção, logo, não cabe HC. Claro que contra este efeito específico é que não caberá o HC, mas caberá contra a eventual prisão determinada por conta do crime praticado. Da mesma forma, se foi aplicada a um servidor público, como sanção estritamente administrativa, a perda de seu cargo, contra esta decisão também não caberá HC.

Estas e quaisquer situações em que não se discuta o direito de ir e vir não poderão ser razão para impetração de HC. Por isso que foram editadas outras súmulas pelo STF neste mesmo sentido, que podem ser compreendidas com as explicações acima dadas. São elas:

  • Súmula 693 STF - não cabe habeas corpus contra decisão condenatória a pena de multa, ou relativo a processo em curso por infração penal a que a pena pecuniária seja a única cominada - claro, pois a pena de multa não retira a liberdade de ir e vir, e hoje a sua inadimplência não acarreta em conversão na privação de liberdade, como já fora possível em nosso ordenamento.
  • Súmula 695 STF - não cabe habeas corpus quando já extinta a pena privativa de liberdade - é a situação de o sujeito querer exercer algum direito contra o Estado (ex.: receber o salário a que fazia jus pelo trabalho que realizou enquanto estava preso). Se sua pena já foi extinta, não há por que discutir tais direitos por via de HC, uma vez que o direito de locomoção não está mais em causa.
  • Súmula 395 STF - não se conhece de recurso de habeas corpus cujo objeto seja resolver sobre o ônus das custas, por não estar mais em causa a liberdade de locomoção - se a intenção é discutir quem deverá ou não pagar alguma custa processual (por algum ato praticado no processo que exija o pagamento destas custas), o instrumento adequado não será o HC, pelos mesmos motivos acima expostos.

NOTAS:

[1] Do site Consultor Jurídico: https://www.conjur.com.br/2005-set-22/juiz_nega_hc_chimpanze_reclusa_zoologico_bahia. Acesso em: 8/2/2022.

[2] Art. 102. A condenação da praça a pena privativa de liberdade, por tempo superior a dois anos, importa sua exclusão das fôrças armadas.

[3] § 3º Os membros das Forças Armadas são denominados militares, aplicando-se-lhes, além das que vierem a ser fixadas em lei, as seguintes disposições: VI - o oficial só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra; VII - o oficial condenado na justiça comum ou militar a pena privativa de liberdade superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, será submetido ao julgamento previsto no inciso anterior.

[4] Art. 92 - São também efeitos da condenação: I - a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo: a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública.