Súmula 600 STJ - Para a configuração da violência doméstica e familiar prevista no artigo 5º da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) não se exige a coabitação entre autor e vítima.
Autor: Marcel Figueiredo Gonçalves.
Comentários: a súmula se refere ao art. 5º da Lei Maria da Penha (11.340/06), que diz o seguinte:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
O "caput" traz as formas de violência possíveis. Tendemos a pensar que a violência contra a mulher se refere tão somente ao aspecto físico. Em verdade, se fosse possível sabermos empiricamente, a maioria das práticas de violência se dá, provavelmente, no âmbito psicológico. Quando o marido obriga a mulher a se vestir de determinada forma, a fazer o alimento da casa, a não se portar de um ou outro jeito, a se manter com determinado peso etc., tudo isso é violência psicológica, e muito disso entra para o que se conhece por "cifra negra da criminalidade", cujo conceito já fora explicado em nosso site, na aba "Informe-se".
Já nos incisos deste art. 5º, o legislador trouxe em quais âmbitos esta violência poderá restar configurada. Aqui também se desmistifica uma primeira impressão comum no público leigo: a de que a Lei Maria da Penha só será aplicada no contexto de matrimônio entre homem e mulher, quando do momento de suas relações conjugais nos lares. Não é verdade.
Tudo isso (formas de violência e quais contextos de prática) é trazido para se saber se poderemos ou não aplicar as medidas previstas na Lei Maria da Penha.
A violência doméstica, portanto, poderá ser concretizada ainda que a vítima não esteja em seu lar e ainda que não coabite ou nunca tenha coabitado (morado juntos) com o seu parceiro. É o caso, por exemplo, de dois namorados, ambos com 19 anos de idade, que estão no relacionamento há alguns meses e nunca tenham coabitado, pois seus pais não querem. Como eles ainda dependem dos pais, não conseguem se mudar para morarem em um apartamento. Suponha que o homem da relação agrida sua namorada, no meio de uma danceteria, pois, segundo ele, ela está com uma roupa absolutamente inadequada para o que ele considera ser uma "mulher decente".
Está configurada violência doméstica contra a vítima, pois:
- Houve uma lesão, uma violência física ("caput" do art. 5º);
- Esta lesão se deu por razões de gênero ("caput" do art. 5º);
- Esta lesão se deu numa relação íntima de afeto, na qual o agressor convive com a ofendida, ainda que nunca tenham morado juntos (inciso III do art. 5º).
Poderia perguntar o leitor: mas qual seria a dúvida? O inciso III não é claro em se dizer que não é necessária a coabitação? Por que foi necessária a edição desta súmula?
Como sabemos, em Direito as teses são quase sempre possíveis. E, para este caso, diversas foram as teses trazidas pela doutrina e pela práxis no sentido de que, quando o agressor nunca tivesse coabitado com a vítima, as medidas da Lei Maria da Penha não poderiam ser a ele aplicadas, pois não estaria configurada a violência "doméstica" (termo que nos traz a noção inicial de ser "aquilo que se refere ao que é de dentro do lar").
Entretanto,
não é o caso. A teleologia da Lei Maria da Penha nos obriga a pensar que a
intenção da lei é a proteção da mulher em situação de vulnerabilidade, quando
em suas relações de afeto, havendo ou não coabitação. Por razões
histórico-culturais, mulheres são agredidas (com todas as formas acima citadas)
em quantidade estatisticamente assustadora. E estas agressões se dão exatamente
por conta das questões culturais citadas, que independem da existência
(atual ou pretérita) de coabitação.