Súmula 589 STJ - É inaplicável o princípio da insignificância nos crimes ou contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas.
Autor: Marcel Figueiredo Gonçalves.
Comentários: o que diz o princípio da insignificância? Que, para a existência de um crime, não basta haver uma lesão a um bem jurídico-penal; esta lesão deve ser relevante para que uma conduta seja considerada como criminosa. Exclui-se, portanto, a tipicidade material do crime (e não a formal, a previsão legal). Ou seja, o furto de um bombom no supermercado não deixa de ser crime em sentido formal (está sim previsto em lei, no art. 155 CP, e lá continua), mas não é um crime em sentido empírico, fático, material, isto é, não há relevância real ou social nesta conduta, daí não iremos considerá-la como criminosa, devido à ínfima lesão causada ao bem jurídico-penal "patrimônio" neste caso (princípio da insignificância)[1].
Já são por demasiado conhecidos os requisitos sugeridos pelo STF para que se possa aplicar o princípio da insignificância nos casos concretos:
- mínima ofensividade da conduta do agente;
- nenhuma periculosidade social da ação;
- reduzido grau de reprovabilidade do comportamento;
- inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Por evidente que, em termos de violência doméstica, nenhum destes requisitos é preenchido, não se podendo, mesmo, defender a aplicação da insignificância para estes casos. E foi isso que a súmula 589 STJ quis ratificar. Então, não importa se foi apenas um tapa, que ocasionou apenas uma rubefação[2], que em seguida desapareceu. Terá havido violência em âmbito doméstico, devendo o agente responder pelo art. 129, § 13 CP, tipo penal recém introduzido na legislação: § 13. Se a lesão for praticada contra a mulher, por razões da condição do sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro anos).
Não obstante, uma questão importante se pergunta neste caso: e se tiver havido a bagatela imprópria? Primeiro, vamos ver o que é isso.
Na bagatela imprópria, o crime efetivamente tem sua relevância, é significante. Contudo, em vista de qualquer acontecimento posterior, a aplicação da pena se torna desnecessária, inútil, pois, agora, a conduta se tornou insignificante. Exemplo: a esposa foi agredida pelo marido, de forma leve. Pelo STJ, não importa a graduação da lesão, há significância, há crime. É o que diz a S. 589 acima vista. Contudo, durante o processo, a esposa perdoa o marido e quer com ele conviver normalmente. Aí entraria a bagatela imprópria e afirmaria que "a conduta que outrora era significante agora já não é mais, já não merece uma tutela penal".
Isso é o que diz a bagatela imprópria. Seus defensores baseiam a possibilidade de sua aplicação no art. 59 CP, na parte negritada abaixo: Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.
E o que o STJ pensa sobre a bagatela imprópria para os crimes praticados em âmbito doméstico? O STJ também não aceita a aplicação da bagatela imprópria. Ou seja, a súmula 589 vale tanto para a insignificância como para a insignificância imprópria. Veja um exemplo:
"[...] LESÃO CORPORAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. ART. 129, § 9º, DO CP. PRINCÍPIO DA BAGATELA IMPRÓPRIA. INAPLICABILIDADE. [...] 1. O princípio da bagatela imprópria não tem aplicação aos delitos praticados com violência à pessoa, no âmbito das relações domésticas, dada a relevância penal da conduta, não implicando a reconciliação do casal em desnecessidade da pena. [...]" (AgRg no REsp 1463975 MS, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 09/08/2016, DJe 22/08/2016)".
Razões de política criminal podem explicar isso, especialmente o fato de a então vítima poder estar sendo ameaçada pelo marido a dizer que o perdoou. O medo, pavor, a prisão em que se encontra a mulher pode acabar por fazê-la mesmo falar, justificando-se a não aceitação deste perdão como fator impeditivo de aplicação da pena.
Por outro lado, se, efetivamente, ocorreu um perdão por parte da esposa, estaremos diante de uma situação bem controvertida (ou patética, se preferir) se defendermos a punição do marido. Veja: a vítima já perdoou; a vítima já quer voltar a se deitar com o marido; mas, não, um Juiz de Direito, que sequer conhece o casal, irá dizer: "não importa, eu vou puni-lo; não importa se já está tudo bem, estou aqui para adentrar em vossa vida íntima e privada e atrapalhar a vossa relação".
A obrigatoriedade e indisponibilidade da ação penal, o caráter público do Direito Penal etc., são os fatores que determinam esta situação. Haveria que se ter sensibilidade e muito cuidado no caso concreto, podendo o membro do Ministério Público, em nosso entender, pedir a absolvição em algumas situações, baseando-se na desnecessidade da pena, prevista no art. 59 CP. Aliás, somos defensores de uma alteração na principiologia penal, a fim de se permitir a restauração e solução pacífica de litígios em tantos outros casos também. Por enquanto, não é o que temos, e o STJ está, aí, apenas seguindo o que está em vigor, sendo difícil se falar em "erro" ou "acerto".
Resta saber se o STJ manterá este posicionamento (não aceitação da insignificância, mesmo com o perdão da vítima) quanto ao novo tipo penal trazido em 28/07/21, no art. 147-B CP, uma vez que este trata não de violência física, mas sim psicológica (em tese e em princípio, menos grave): Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação: Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.
Inicialmente, pensamos que sim, que o STJ manterá sua posição de inadmissibilidade da insignificância, até porque a súmula quer englobar qualquer tipo de crime ou contravenção. Em resumo: se há violência doméstica contra a mulher, não há qualquer tipo de insignificância.
NOTAS:
[1] Em nosso entender, é possível (e talvez mais adequado) vermos a insignificância como postulado (e não como princípio) advindo do princípio da intervenção mínima. Não obstante, utilizamos o termo que está posto na súmula.
[2] A
rubefação, em Medicina Legal, é, uma lesão causada, em regra geral, por um
instrumento contundente (superfície plana). Por meio do contato com o corpo
humano, os vasos sanguíneos da vítima se dilatam, mas não estouram, ou seja,
não há extravasamento de sangue, apenas dilatação. É a famosa "vermelhidão",
que desaparece em pouco tempo.